São Paulo / SP - sábado, 04 de maio de 2024

Obesidade Monogênica

Obesidade Monogênica


Como temos conversado com frequência, a obesidade persiste sendo um problema sério, que tem se alastrado mundo afora e tem causado muitos problemas, tanto psicossociais, físicos, acarretando complicações crônicas que prejudicam, e muito, a qualidade de vida. Perder peso está longe de ser apenas um problema estético, mas é um sério problema metabólico que deve ser equacionado, o quanto antes.

Com frequência os pais me perguntam quando se deve ficar preocupado com uma criança que esteja ganhando peso a mais. A preocupação e a procura de auxílio começa a partir do momento em que se detecta o problema, EM QUALQUER IDADE!!! A ideia de que as crianças vão crescer e emagrecer não é verdadeira e, se isto realmente acontecesse, não teríamos o número de obesos pelo mundo que vemos atualmente.

Um grande parte da obesidade tem caráter genético, ou seja, herdamos de nossas famílias a tendência a ser obesos. Claro que a obesidae exige que nos alimentemos com mais calorias. Você já viu algum obeso dentre pessoas que não têm acesso ao alimento? Neste artigo que mostro a seguir, discutem-se causas de obesidade em que uma mutação gênica específica foi detectada e por isso chamamos de OBESIDADE MONOGÊNICA.  Esses casos são raros mas mostram uma coisa muito interessante: quando sabemos a causa e dispomos do remédio, o tratamento resolve o problema. É o caso de quem tem falta de um hormônio chamado LEPTINA. Essas crianças engordam muito, já em fase inicial da vida. Se dermos Leptina para elas, elas perderão peso e se tornarão normais.

O problema é que, na maioria das vezes, não sabemos o que exatamente ocorre para que aquele indivíduo se torne obeso. Logo, não temos o remédio específico e as coisas ficam muito mais difíceis já que o paciente deverá aderir a um novo estilo de vida, onde a comida saia de seu foco principal e a atividade física passe a ser parte integrante de seu dia-a-dia.

Espero que esta leitura lhes seja agradável.

Dr. Durval Damiani

 

OBESIDADE MONOGÊNICA –

DURVAL DAMIANI

DANIEL DAMIANI

LIDIANE PERLAMAGNA

RUTH ROCHA

 

INTRODUÇÃO –

            A primeira vez que se sugeriu uma agregação familial de peso corpóreo e, especificamente, obesidade, foi no livro “Natural Inheritance”, escrito por Sir Francis Galton em 1889 (Russo P, Lauria F, Siani A. Heritability of body weight: moving beyond genetics. Nutrition, Metaboism & Cardiovascular Diseases 2010;20:691-7). Vários trabalhos posteriores vieram reforçar a ideia de agregação familial de obesidade, mas sempre surgia a dúvida de qual era a parte do ambiente, repartido pela família, que gerava a condição de obesidade. Estudos de gêmeos e de adotivos vieram para tentar elucidar a contribuição relativa do ambiente versus a genética, sempre ressaltando a importância da condição genética no efeito final.

Quando se fala que a obesidade tem um forte component genético chegando a responder por 40 a 70% da obesidade, não estamos nos referindo a uma determinada mutação genética, ou seja, a um distúrbio monogênico. São vários, e ainda muitos deles senão a maioria desconhecidos, os genes que atuam de alguma forma na regulação do peso e esse conjunto aporta uma predisposição genética para sermos ou não obesos.  Até o momento, mais de 20 loci de suscetibilidade para obesidade foram descritos, sempre implicando genes envolvidos na regulação da ingestão alimentar atuando no sistema nervoso central ou na função adipocitária. Dessa forma, podemos falar em obesidade monogênica, obesidade sindrômica ou obesidade comum (poligênica) (Herrera BM, Lindgren CM. The genetics of obesity. Curr Diab Rep 2010;10:498-505). Interessante notar que esta alta taxa de herança se aplica a diferentes medidas de obesidade. Assim, para o índice de massa corpórea, 40 a 70% se deve a fatores hereditários; para prega subescapular, 77%, para circunferência abdominal, 77% e para a relação cintura/quadrial, 45%.

É claro que o papel do ambiente é fundamental, pois ninguém se torna obeso se não comer, mas atribuir-se este verdadeiro surto de obesidade mundial a fatores nutricionais e comportamentais apenas, esquecendo-se dessa genética de base, é desconhecer a fisiopatologia da regulação do peso e do apetite (Lustig).

            É curioso como uma condição clínica de extrema gravidade e de implicações metabólicas, sociais, psicológicas, prejudicando em muito a qualidade de vida e a longevidade, conhecida há milênios, ainda seja tão pouco compreendida nos seus mecanismos fisiopatológicos e, portanto, nos deixa tão desarmados quanto a tentativas terapêuticas. Hoje, podemos afirmar que a única maneira efetiva de tratamento da obesidade grave é a cirurgia bariátrica, o que, digamos, é alarmante! (Lenard NR, Berthoud H. Central and peripheral regulation of food intake and physical activity: pathways and genes. Obesity 2008;16(3):S11-S22)   Velhote MCP, Damiani D. Bariatric surgery in adolescents: preliminary 1-year results with a novel technique (Santoro III). Obesity Surgery 2010:20(12):1710-15)

           Quem de nós não conhece pessoas que comem erradamente, nunca se exercitam e não ganham peso? Qual é a condição metabólica dessas pessoas, herdade geneticamente, que as faz tão resistentes ao ganho de peso, enquanto outras têm uma enorme facilidade de armazenar gordura? Onde está esse controle de peso, esse “adipostato” e como podemos regulá-lo para propiciar uma adequação de peso?

Nossa compreensão atual da regulação do balanço energético  sugere que um importante número de genes e seus produtos quando funcionam mal, levam inevitavelmente a obesidade grave num pequeno número de pessoas (obesidade monogênica) enquanto milhares de genes que podem potencialmente se combinar em suas disfunções respondem pelos numerosos casos de obesidade que vemos pelo mundo afora.

Nos casos em que se detecta uma mutação responsável pela obesidade, como na mutação do gene da leptina, o paciente pode ser tratado com leptina recombinante e vai readiquirir seu peso normal, sem mesmo que tenhamos preocupações quanto ao tipo de alimentação ou ao grau de atividade física a que é exposto. Em termos simples, numa condição clínica em que conhecemos a causa (no exemplo, falta de leptina) e temos o tratamento (leptina), resolvemos o problema da obesidade. O que ocorre, no entanto é que, na enorme maioria das vezes, não sabemos a causa da obesidade, não dispomos de um antídoto específico e, por consequência, temos chances muito reduzidas de resolver o problema. Nós costumamos colocar todos os obesos num mesmo grupo, quando, na verdade, a obesidade é uma grande síndrome, com variadas (e desconhecidas) causas, que implicariam tratamentos individualizados. “Mudar hábito de vida” é fácil de prescrever mas muito difícil de se conseguir e daí as perdas de peso iniciais se desfazerem com o correr do tempo e os resultados a médio e a longo prazos serem decepcionantes.

OS MECANISMOS DE REGULAÇÃO DO APETITE –   

            Há um capítulo específico abordando o tema mas aqui, faremos uma síntese para que possamos entender quais genes podem, se mutados, conduzir a um ganho excessivo de peso.

FERRAMENTAS PARA ENCONTRAR GENES ENVOLVIDOS NA OBESIDADE –

            Estudos de genes candidatos – embora este enfoque foi extremamente útil para fenes envolvidos em obesidade sindrômica ou monogênica, na obesidade comum (que responde pela imensa maioria dos casos) este enfoque se mostra limitado, com muito baixa reprodutibilidade. Os estudos de associação, em que se conpara a frequência alélica em casos e em controles, são afetados pelo pequeno tamanhodas amostras, conhecimento limitado da biologia e da fisiologia que afeta a seleção de genes candidatos, a heterogeneidade das amostras, pobre fenotipagem e o alto custo e esforço da genotipagem (Rankinen T, Zuberi A, Chagnon YC  Weisnagel SJ, Argyropoulos G, Walts B, Pérusse L, Bouchard C. The human obesity gene map: the 2005 update. Obesity (Silver Spring) 2006:14:529-644). Uma metanálise envolvendo 37 estudos e 31000 indivíduos mostra claramente as limitações dos estudos de linkage (Saunders CL, Chiodini BD, Sham P, Lewis CM, Abkevich V, Adeyemo AA, de Andrade M, Arya R, Berenson GS, Blangero J, Boehnke M, Borecki IB, Chagnon YC, Chen W, Comuzzie AG, Deng HW, Duggirala R, Feitosa MF, Froguel P, Hanson RL, Hebebrand J, Huezo-Dias P, Kissebah AH, Li W, Luke A, Martin LJ, Nash M, Ohman M, Palmer LJ, Peltonen L, Perola M, Price RA, Redline S, Srinivasan SR, Stern MP, Stone S, Stringham H, Turner S, Wijmenga C, Collier DA. Meta-analysis of genome-wide linkage studies in BMI and obesity. Obesity (Silver Spring) 2007;15:2263-2275).

            Na obesidade comum, os avanços têm sido possíveis graças aos estudos de associação genômica (genome-wide association studies – GWAS). Esta técnica se baseia no fato de qeu os marcadores genéticos comuns podem ser herdados juntos, como “blocos” devidos a um desequilíbrio de ligação. Esta técnica permite capturar 80% de todas as variações comuns (o que implica mais de 14 milhões de variantes) utilizando apenas 500.000 polimorfismos de nucleotídeos únicos (SNP – single nucleotide polymorphisms) cuidadosamente selecionados.  O primeiro achado de sucesso com tal técnica foi o locus FTO (fat mass and obesity associated) em 2007 (Frayling TM, Timpson NJ, Weedon MN, Zeggini E, Freathy RM, Lindgren CM, Perry JR, Elliott KS, Lango H, Rayner NW, Shields B, Harries LW, Barrett JC, Ellard S, Groves CJ, Knight B, Patch AM, Ness AR, Ebrahim S, Lawlor DA, Ring SM, Ben-Shlomo Y, Jarvelin MR, Sovio U, Bennett AJ, Melzer D, Ferrucci L, Loos RJ, Barroso I, Wareham NJ, Karpe F, Owen KR, Cardon LR, Walker M, Hitman GA, Palmer CN, Doney AS, Morris AD, Smith GD, Hattersley AT, McCarthy MI. A common variant in the FTO gene is associated with body mass index and predisposes to childhood and adult obesity. Science. 2007 May 11;316(5826):889-94) .

 

AS OBESIDADES MONOGÊNICAS –

Loos em 2003 propôs uma classificação das “obesidades genéticas” agrupando-as em obesidade por mutação de um único gene (monogênica) que responderia por 1 a 5% dos casos de obesidade; forte predisposição – levaria a sobrepeso em ambiente não obesogênico e obesidade em ambiente obesogênico; predisposição leve – peso normal em ambiente não obesogênico e sobrepeso em ambiente obesogênico; geneticamente resistente – peso normal em ambiente obesogênico. Nesta divisão, claramente o ambiente é modulado por uma condição genética básica que predispõe ou não à obesidade (Loos, 2003).

Uma herança “monogênica” é definida como a herança de um gene que tem um forte efeito no fenótipo (trato Mendeliano ou condição Mendeliana) originando uma relação quase que de 1 para 1 entre genótipo e fenótipo.  Um “gene maior” é definido como um gene que guarda uma variante associada a um alto risco de, durante a vida, desenvolver uma determinada doença. Genes modificadores e fatores ambientais jogam um papel adicional na etiologia da respectiva doença (Hinney A, Vogel CIG, Hebebrand J. From monogenic to polygenic obesity: recent advances. Eur Child Adolesc Psychiatry 2010;19:297-310).

            As formas monogênicas de obesidade são pouco frequentes e poucos são os genes que, uma vez mutados, levam ao acúmulo de massa adiposa. As formas conhecidas de obesidade monogênica podem ser divididas em três grandes categorias: (RanadiveSA, Vaisse C. Lessons from extreme human obesity: monogeninc disorders.  Endocrinol Metab Clin N Am 2008;37:733-51)

1.    Mutações em genes que têm um papel fisiológico no sistema leptina-melanocortina hipotalâmico, regulador do balanço energético. Nessa categoria se encaixam a obesidade causada por mutação do gene da leptina, do receptor de leptina, receptor de melanocortina tipo 4 (MC4R), pró-ópio-melanocortina (POMC) e pró-hormônio convertase 1/3 (PC 1/3). Desse grupo de genes, todos têm transmissão autossômica recessiva, com exceção de MC4R que tem herança autossômica dominante.

2.    Mutações nos três genes necessários [ara p desenvolvimento do hipotálamo, que incluem SIM1, BDNF (brain-derived neurotrophic factor) e NTRK2 (tropomyosin-related kinase B -receptor de BDNF).  Mutações em um desses genes leva a grave obesidade, ressaltando o papel crítico do hipotálamo na regulação do peso corpóreo.

3.    Mutações em genes que fazem parte de síndromes complexas incluindo obesidade. Neste grupo, as mutações são menos compreendidas na sua relação fisiopatológica com a obesidade. Síndrome de  Bardet-Biedl(BBS), Alström e Carpenter caracterizam-se por disfunção ciliar e a síndrome de Prader-Labhardt-Willi serão brevemente discutidas neste capítulo

LEPTINA  -     

O início do estudo da genética molecular da obesidade dá-se com a clonagem dos genes agouti e da leptina em roedores.

            Em 1994 foi clonado o gene da leptina, que desencadeou uma verdadeira revolução na compreensão da biologia da obesidade. O hormônio leptina é produzido no tecido adiposo branco e o seu receptor expressa-se em vários tecidos mas, seus efeitos sobre o peso corpóreo manifestam-se por ação hipotalâmica. A leptina é um marcador da quantidade de tecido adiposo, de modo que, com o aumento da massa adiposa, aumenta a produção de leptina, que reduz a ingestão alimentar (via inibição de neuropeptídeo Y) e estimulação dos neurônios POMC, com produção de αMSH, bem como aumenta o gasto energético, o que tende a fazer a massa adiposa retornar ao seu  “set point” (Fig 1). Evolutivamente, no entanto, não devemos esquecer que a leptina foi “desenhada” basicamente para evitar a morte por inanição e não para prevenir a obesidade. Isto é evidenciado nas pessoas obesas, em que, com o aumento do peso e da leptina, desenvolve-se resistência a este hormônio, que deixa de cruzar a barreira hêmato liquórica por ligar-se a triglicerídeos  e o peso continua a aumentar (veja detalhes no capítulo de regulação do apetite, nesta mesma sessão).

Como afirma Morrison e Berthoud, “esses sistemas neurais de regulação de peso auxiliam pderosamente o regulador hipotalâmico a defender os limites inferiores do peso mas fazem pouco para ultrapassar sua inerente fraqueza  em defender o organismo da super-nutrição e dos limites superiores de peso e de adiposidade” (Morrison CD, Berthoud H. Neurobiology of nutrition and obesity. Nutrition Reviews 2007;65(12):517-34). Acho importante esta visão de que este sistema foi desenvolvido de uma forma “assimétrica”, ou seja, a leptina impede ou tenta impedir que o indivíduo morra de fome, pois a redução de suas concentrações, em situações de carência de tecido adiposo, leva a um apetite voraz, através da desinibição do Neuropeptídeo Y (NPY) no hipotálamo. Quando se inicia acúmulo de tecido adiposo, a concentração de leptina aumenta, o que tenderia a reduzir o apetite. No entanto, acaba se desenvolvendo resistência à leptina e o indivíduo tende a acumular mais tecido adiposo.  Várias são as situações em que se pode ter leptina baixa , incluindo-se mutação do gene da leptina, falta de tecido adiposo em lipodistrofias ou em situações de falta de comida (desnutrição). Dessa forma, a mutação do gene da leptina é uma das causas de obesidade monogênica, já tendo sido descritos vários casos de pacientes com tal distúrbio, mas são extremamente raros.

 

aMSH

(inibidor do apetite)

NeurôniosPOMC

Pró-Convertase 1

Aumento de POMC

Leptina (Adipócitos)

Agouti e

Proteínas relacionadas

MC4R

(Hipofagia)

Obesidade

???

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Fig. 1 – Representação esquemática da relação entre Pró-ópio-melanocortina (POMC), Leptina, aMSH e gene Agouti na regulação do apetite e na indução de obesidade. O estímulo do receptor MC4R inibe o apetite enquanto Agouti inibe a estimulação do receptor MC4R feita pelo αMSH. Mutações no receptor MC4R, de herança autossômica dominante, pode levar à obesidade. A leptina atua via neurônios POMC, estimulando a produção de αMSH, que inibe o apetite. (Mod. de Warden, 2001).

        Quando ocorre mutação do gene da letpina, levando a concentrações extremamente baixas de leptina sérica, uma obesidade grave se desenvolve no início da vida, em crianças que tiveram peso de nascimento normal. É uma condição rara, de herança autossômica recessiva e pouco mais de 10 pacientes foram descritos até o momento, exibindo mutações frameshift (∆G133) ou missense (R105Y). Todos os pacientes descritos apresentavam em comum obesidade grave, hiperfagia, concentrações de leptina desproporcionais ao seu grau de obesidade. Nascem com peso normal mas, já a partir de 3 meses começa um dramático ganho de peso, atingindo 20kg com 1 ano de idade e mais de 50kg aos 5 anos de idade.Além disso, tais pacientes apresentam mais de 50% de gordura corpórea, quando o normal  em crianças é de 15 a 25% (Montague CT, Farooqi IS, Whitehead JP, Soos MA, Rau H, Wareham NJ, Sewter CP, Digby JE, Mohammed SN, Hurst JA, Cheetham CH, Earley AR, Barnett AH, Prins JB, O'Rahilly S. Congenital leptin deficiency is associated with severe early-onset obesity in humans. Nature 1997;387:6636):903-8).

Nos heterozigotos, a concentração de leptina era mais baixa e o índice de massa corpórea mais elevado em comparação aos controles , implicando essa forma heterozigota como possível causa de muitos casos de obesidade comum (poligênica).

Os pacientes deficientes em leptina apresentam puberdade atrasada, com hipogonadismo hipogonadotrófico, o que ressalta o papel importante da leptina na indução puberal e alterada função de células T, que se traduz em frequentes infecções respiratórias. Como a leptina também regula a enzima pró-hormônio convertase 1/3 (PC1/3), responsável pela conversão de TRH e GHRH, a disfunção tireoidiana e distúrbios do crescimento podem fazer parte do quadro.

 Estes pacientes beneficiam-se do uso de leptina, com dramática perda de peso e redução da proporção adipocitária, à semelhança das experiências realizadas com os ratos ob (ratos deficientes em leptina). Trata-se portanto, de uma doença única em que, baseado numa concentração sérica de leptina extremamente baixa para o grau de obesidade, pode-se ter um tratamento verdadeiramente eficiente com a reposição deste hormônio e a volta ao peso normal. Um aviso importante é que o sequenciamento do gene da leptina é o ponto alto do diagnóstico porque poderemos ter uma mutação que não afete a síntese ou a secreção da leptina mas altera sua ligação ao receptor ou outras funções pós-receptor. Nesses casos, uma concentração sérica de leptina proporcional à massa adiposa pode estar presente e, ao invés de concentrações indetectáveis de leptina, teramos uma concentração normal para o grau de adiposidade (Ranadive 2008)

 

RECEPTOR DA LEPTINA –

            Os pacientes com mutação do receptor de leptina apresentam um quadro clínico muito semelhante aos que têm mutação do gene da leptina, laboratorialmente diferenciando-se porque apresentam concentrações elevadas, e não baixas, do hormônio leptina.Os três primeiros casos descritos foram de irmãs em uma família argelina. A obesidade inicia-se precocemente em crianças que nasceram com peso normal e, com 1 ano de idade, já pesam mais de 15 kg. Avaliadas na adolescência, apresentam índice de massa corpórea de 50 a 70kg/m2, com uma proporção de gordura superior a 65%. Como na deficiência de leptina, apresentam hipogonadismo hipogonadotrófico e secreção alterada de hormônio de crescimento e de hormônio tireoidiano (Clément K, Vaisse C, Lahlou N, Cabrol S, Pelloux V, Cassuto D, Gourmelen M, Dina C, Chambaz J, Lacorte JM, Basdevant A, Bougnères P, Lebouc Y, Froguel P, Guy-Grand B.  A mutation in the human leptin receptor gene causes obesity and pituitary dysfunction. Nature 1998;392(6674):398-401).

            Um dado interessante é que, nos pacientes com mutação no receptor de leptina, as concentrações séricas da leptina não são mais elevadas do que numa pessoa obesa, sem a mutação, o que sugere que não haja mecanismo de feed-back entre o receptor de leptina e o tecido adiposo e a leptina é secretada do mesmo modo com o receptor funcionando ou não. Em relação aos heterozigotos, não são gravemente obesos mas apresentam aumentada massa gorda, na mesma extensão que os heterozigotos para as mutações do gene da leptina.

PRÓ-ÓPIO-MELANOCORTINA (POMC)

            A POMC é precursora de cinco proteínas biologicamente ativas: ACTH, αMSH, βMSH, γMSH e βendorfina, através da ação das pró-convertases. Enquanto o ACTH é produzido na hipófise (pela ação da PC1/3), os outros são produzidos no hipotálamo e na pele, mas não na hipófise.

            Os pacientes com deficiência completa de POMC apresentam insuficiência adrenal já ao nascimento já que não conseguem secretar ACTH. A hiperfagia e a obesidade resultam de falta de estimulação, pelo αMSH, do receptor melanocortina tipo 4 (MC4R), que, estimulado, freia o apetite. Os pacientes nascem com peso normal, mas, já antes dos seis meses de idade, estão obesos, ultrapassando 15 kg com 1 ano e 25kg aos 3 anos. Dentre os pacientes descritos ( até 2008 havia 6 pacientes descritos) o cabelo avermelhado (pela falta de αMSH) ocorreu em todos , exceto um paciente turco que tinha cabelos negros, de modo que esta característica não ocorre em todos os pacientes e ter cabelos negros não exclui deficiência de POMC. (Farooqi IS, Drop S, Clements A, Keogh JM, Biernacka J, Lowenbein S, Challis BG, O'Rahilly S. Heterozygosity for a POMC-null mutation and increased obesity risk in humans. Diabetes 2006;55(9):2549-53).

            Pacientes heterozigotos para a mutação da POMC apresentam IMC mais alto, hiperfagia sem outras manifestações clínicas tais como insuficiência suprarrenal.

PRÓ HORMÔNIO CONVERTASE 1/3 (PC1/3)

            As pró-convertases são uma família de sete serina endoproteases que clivam precursores hormonais em pepetídeos biologicamente ativos. As PC1/3 e a PC2 expressam-se seletivamente em tecidos neuroendócrinos convertendo próTRH, pró-glucagon, pró-insulina, pró-GHRH, POMC, pró-neuropeptídeo Y e pró-CART (transcritos relacionados a anfetamina e cocaína) nos seus peptídeos ativos.

            Os casos descritos de mutação da PC1/3 mostravam obesidade grave de início precoce, hiperfagia que se pensa resultar da falta de ação do αMSH no receptor de melanocortina tipo 4 e, com isso, não sinalizar com saciedade.Dois dos três pacientes descritos apresentavam leve hipocortisolismo devido a deficiência parcial de ACTH, não tão intensa quanto a de pacientes com deficiência de POMC. Malabsorção pode ocorrer devido a um processamento inadequado de pró-glucagon para GLP-2, em células intestinais, prejudicando o seu efeito trófico.Devido ao processamento inadequado de pró-insulina nas células β, pode haver hiperglicemia pós-prandial com hipoglicemia reativa posterior. No momento, a única avaliação laboratorial que pode sugerir o diagnóstico de mutação de PC1/3 é a dosagem de pró-insulina e de insulina, mostrando uma relação aumentada entre elas (Jackson RS, Creemers JW, Ohagi S, Raffin-Sanson ML, Sanders L, Montague CT, Hutton JC, O'Rahilly S. Obesity and impaired prohormone processing associated with mutations in the human prohormone convertase 1 gene. Nat Genet 1997;16(3):303-6).

            Os que apresentam heterozigose para a mutação de PC1/3 não têm fenótipo especial, já que há uma superposição de especificidade de substrado e redundância funcional entre PC1/3 e PC2.

 

RECEPTOR DE MELANOCORTINA TIPO 4 (MC4R)

            O estudo da via da melanocortina iniciou-se com o estudo dos ratos obesos com pelagem amarela (conhecidos como ratos amarelos agouti), descobertos há mais de 100 anos. O gene mutado é chamado agouti ou proteína sinalizadora do agouti (ASIP). Inicialmente, ASIP não era visto como um gene candidato à obesidade por ser produzido somente na pele onde, como um fator parácrino, ele bloqueia a ligação do aMSH ao receptor de melanocortina 1 (MC1R). Este efeito não causava obesidade porque os ratos sem MC1R são amarelos mas não obesos. Todavia ASIP também bloqueava a ligação de aMSH a outros receptores de melanocortina, incluindo o MC3R e MC4R, que são expressos em centros hipotalâmicos reguladores do peso. Dessa forma, nos ratos amarelos obesos, a obesidade resultava da expressão ectópica da ASIP no hipotálamo, onde ela antagoniza a ligação de aMSH ao MC3R e MC4R. Vários estudos têm demonstrado que a injeção intra-ventricular de aMSH resulta em reduzida ingestão alimentar

Dentre os vários sistemas componentes do circuito leptina-melanocortina, podemos dizer que o receptor de melanocortina tipo 4 é a molécula mais especializada, sendo sua herança autossômica dominante. Com apenas um alelo mutado, desenvolve-se uma obesidade grave, de início precoce. Os pacientes que apresentam mutação do MC4R não exibem outras alterações físicas, hormonais ou de desenvolvimento, ressaltando o papel do MC4R como muito específico para o balanço energético. Dentre as várias causas de obesidade monogênica, a  mutação do gene do MC4R é a mais frequente, respondendo por 2,83% das crianças com obesidade de início precoce e 2,35% dos adultos com obesidade de início mais tardio (Ranadive 2008// Lubrano-Berthelier C, Dubern B, Lacorte JM, Picard F, Shapiro A, Zhang S, Bertrais S, Hercberg S, Basdevant A, Clement K, Vaisse C. Melanocortin 4 receptor mutations in a large cohort of severely obese adults: prevalence, functional classification, genotype-phenotype relationship, and lack of association with binge eating. J Clin Endocrinol Metab 2006;91(5):1811-8). Quando juntamos todas as causas de obesidade monogênica, elucidamos ao redor de 5% dos pacientes e, portanto, a mutação de MC4R responde por 50% das causas reconhecidas de obesidade monogênica. O frustrante é que restam 95% dos casos sem elucidação diagnóstica!

            Dependendo do grau de comprometimento funcional da mutação do MC4R, teremos fenótipos variados, desde indivíduos magros até gravemente obesos, com início precoce. Como se trata de um gene autossômico dominante, apenas um alelo afetado é suficiente para que o quadro clínico se apresente. No entanto, em situações de mutação em ambos os alelos, o fenótipo é muito mais pronunciado, comparável aos pacientes com deficiência de leptina, receptor de leptina e POMC.

            A via da melanocortina tem se tornado extremamente excitante em termos de elucidação de mecanismos fisiopatológicos envolvidos na obesidade por várias razões :

1.    Ela inclui mais genes da obesidade do que a via da leptina;

2.    Inclui o gene com a mutação mais comum causadora de obesidade e

3.    Sua descoberta ilustra de uma maneira enfática que a compreensão da biologia pode seguir-se à compreensão das vias envolvidas no processo.

 

OBESIDADE CAUSADA POR GENES QUE AFETAM O DESENVOLVIMENTO NEURAL -

Três genes têm se revelado importante no desenvolvimento hipotalâmico, em modelos de camundongos e mutações nesses genes têm sido descritas em obesidade humana, através de mecanismos até agora desconhecidos : SIM1, BCNF e NTRK2. (Ranadive 2008)        

SIM1 (single-minded homolog 1) –

      A primeira mutação nesse gene, localizado no braço longo do cromossomo 6, foi descrita em 2000, em uma menina com obesidade grave de início precoce (aos 3 meses de idade), hiperfagia, alta estatura e gasto energético normal.  Não havia outras características sindrômicas, alterações hormonais ou anomalias do desenvolvimento. (Holder JL Fr, Butte NF, Zinn AR. Profound obesity associated with a balanced translocation that disrupts the SIM1 gene. Hum Mol Genet 2000;9(1):101-8).

Camundongos portadores da mesma mutação apresentam um número reduzido de neurônios no núcleo paraventricular, localização dos neurônios que expressam MC4R. SIM1 parece envolvido no metabolismo energético e parece regular a ingestão alimentar, atuando após o MC4R (downstream of MC4R).

BDNF (brain-derived neurotrophic factor) e seu receptor TRKB (tropomyosin-related kinase B) –

Tanto BDNF (cromossomo 11) quanto TRKB regulam a proliferação, sobrevida e diferenciação de neurônios durante o desenvolvimento e, no sistema nervoso adulto, a plasticidade.  Deficiência parcial de Bdnf e TrkB em camundongos causam hiperfagia e obesidade. Em 2006 foi publicado o primeiro caso de mutação de BDNF em uma menina de 8 anos de idade, com hiperfagia e obesidade. Associava-se ao quadro hiperatividade, alterada cognição, memória e nocicepção (Gray J, Yeo GS, Cox JJ,  Morton J, Adlam AL, Keogh JM, Yanovski JA, El Gharbawy A, Han JC, Tung YC, Hodges JR, Raymond FL, O'rahilly S, Farooqi IS. Hyperphagia, severe obesity, impaired cognitive function, and hyperactivity associated with functional loss of one copy of the brain-derived neurotrophic factor (BDNF) gene. Diabetes 2006;55(12):3366-71).

Um caso de mutação de novo no gene NTRK2 (9q22.1), que codifica o TRKB, foi descrita em um menino de 8 anos de idade, com hiperfagia e obesidade de início precoce. Associava-se retardo de desenvolvimento, comportamento estereotipado e alteração de memória, aprendizado e nocicepção (Yeo GS, Connie Hung CC, Rochford J, Keogh J, Gray J, Sivaramakrishnan S, O'Rahilly S, Farooqi IS A de novo mutation affecgting human TrkB associated with severe obesity and developmental delay. Nat Neurosci 2004;7(11):1187-9)

OBESIDADE ASSOCIADA A ALGUMAS SÍNDROMES –

Prader-Labhardt-Willi  (PWS)–

            A síndrome de Prader-Willi, com incidência entre 1/12000 e 1/15000, apresenta algumas características muito curiosas: inicia-se, logo ao nascimento, com uma extrema hipotonia, tão extrema que há dificuldade de deglutição e, com alguma frequência, a criança deve ser alimentada por sonda. A partir dos 3-4 anos de vida, quando a hipotonia já desapareceu, inicia-se um apetite voraz, que leva a enorme ganho de peso. Este ganho de peso excessivo será a causa do óbito por insuficiência respiratória, com hipoventilação alveolar. Dessa forma, a PWS coloca a vida em risco em dois momentos distintos, um ameaçando a morte por inanição e outro, por excesso alimentar.

            A síndrome se deve a uma perda de material genético no braço longo do cromossomo 15 paterno, constituindo-se num exemplo de imprinting genômico, situação em que o quadro clínico muda dependendo do genitor que passa o gene.

            Baixa estatura, pés e mãos pequenos, retardo mental de grau variável, hipogonadismo hipogonadotrófico são outras características presentes na PWS mas o quadro chama muito a atenção pela voracidade alimentar extrema que esses pacientes apresentam. Cuidados multiprofissionais são necessários desde o início da vida e a prevenção da obesidade passa a ser o ponto-chave no tratamento, inclusive com a introdução de hormônio de crescimento já nos primeiros meses de vida.

 Bardet-Biedl (BBS)–

            Degeneração retiniana, polidactilia, obesidade e defeitos estruturais ou funcionais de rins podem estar presentes. A obesidade nesses pacientes pode ser leve ou grave, inicia-se nos primeiros meses de vida e é responsiva a restrição calórica e aumento do gasto energético pelos exercícios físicos. Esses pacientes apresentam menores níveis de atividade física espontânea quando comparados a obesos sem a síndrome.

            É uma doença geneticamente heterogênea, tendo sido identificadas mutações em 12 genes (BBS 1-12), sete dos quais codificam proteínas altamente conservadas, necessárias para a função ciliar. Essa disfunção ciliar em neurônios específicos poderia estar relacionada à hiperfagia e baixa saciedade (Ranadive , 2008).

 Carpenter –

Craniossinostose,  polidactilia, sindactilia e obesidade fazem parte desta síndrome. É herdado por herança autossômica recessiva, causada por mutação nonsense homozigota L145X  no gene RAB23. O gene RAB23 pertence à família RAB que regula o trafego de proteínas associadas à membrana e está envolvido na formação do cílio primário (como na síndrome de Bardet-Biedl). (Jenkins D, Seelow D, Jehee FS, Perlyn CA, Alonso LG, Bueno DF, Donnai D, Josifova D, Mathijssen IM, Morton JE, Orstavik KH, Sweeney E, Wall SA, Marsh JL, Nurnberg P, Passos-Bueno MR, Wilkie AO. RAB23 mutations in Carpenter syndrome imply an enexpected role for hedgehog signaling in cranial-suture development and obesity. Am J Hum Genet 2007;80(6):1162-70)

 Alström –

            Degeneração retiniana, obesidade de início precoce, diabetes mellitus tipo  2 e perda auditiva são algumas características desta síndrome rara. A transmissão é autossômicarecessiva e causada por mutação do gene ALMS1. A patogênese desta síndrome também está ligada a disfunção do cílio primário (Ranadive 2008).

                       Além dos genes discutidos acima, há outros que podem influenciar a adiposidade em seres humanos e em ratos, como pode ser verificado na Tabela 1, mas não se comportam como “monogenes” em que a mutação é suficiente para explicar todo o fenótipo.

 Tabela 1 – Genes com expressão central e/ou periférica, controladores da adiposidade no ser humano e em ratos (Mod de Warden,2001)

 

Expressão Central ou Periférica

Nome do Gene

Mutação causa obesidade humana?

Mutação causa acúmulo adiposo no rato?

Central

Receptor 5 de Neuropeptídeo Y (NPY5R)

Desconhecido

Sim

Central

Hormônio concentrador de Melanócitos

Desconhecido

Sim

Central

Tubby (TULP1)

Desconhecido

Sim

Central e Periférica

Atractina/Mahogani

Desconhecido

Sim, mutação bloqueia a obesidade agouti

Periférica

Perilipina

Não há estudos publicados

Sim

Periférica

Diacil-glicerol acil transferase (DGAT)

Não há estudos publicados

Sim

Periférica

Lipina 1

Não há estudos publicados

Sim, reduzida massa adiposa

Periférica

Hgmic

Não há estudos publicados

Sim, resistente a dieta

Periférica

Proteína tirosina fosfatase 1B

Desconhecido

Sim, resistente a dieta

Periférica

Proteína desacopladora 1-3 (UCP1-3)

Provável. Resultados controversos

Sim e Não

Periférica

Receptor adrenérgico b3

Provável. Controverso

Sim

 

LIÇÕES APRENDIDAS COM AS OBESIDADE MONOGÊNICAS -

          Os casos descritos de mutação gênica que levam a quadros de obesidade, ressaltam que alguns circuitos são extremamente importantes na regulação do peso corpóreo, incluindo-se aí a via leptina-melanocortina.

        Analisando-se os vários casos descritos, podemos tirar alguns importantes ensinamentos, que podem permitir que caminhemos mais na direção da elucidação fisiopatológica mais completa deste grave e frequente distúrbio metabólico que é a obesidade.

           1.    Os mamíferos podem tornar-se obesos através de vários mecanismos;

2.    A maioria dos homólogos humanos dos genes da obesidade do rato causa obesidade em humanos e daí o interesse no estudo da obesidade nesses animais ;

 

3.    A regulação do peso a longo prazo em seres humanos é centrada no hipotálamo;

4.    Dentro do hipotálamo, o sistema leptina-melanocortina é crítico para o equilíbrio energético.

5.    A obesidade humana mais comum é causada por interação de múltiplos genes. Desta forma, a despeito de um maior avanço sobre a biologia da obesidade, todos os genes conhecidos que, mutados, podem levar à obesidade, respondem por 5% dos casos, deixando-nos a desconfortável tarefa de encontrar explicações para 95% dos pacientes obesos.

6.    O tratamento da deficiência congênita de leptina com a reposição de leptina recombinante é um exemplo de sucesso que surge a partir do conhecimento da patogênese molecular do distúrbio. Apesar de ser uma pesquisa lenta e difícil, todo esforço deve ser aplicado a esta ferramenta que pode desvendar muitos outros aspectos da fisiologia da obesidade e permitir um enfoque mais racional do que temos feito atualmente.